segunda-feira, 5 de março de 2012

Lapinha

(Baden Powell / Paulo César Pinheiro)
Quando eu morrer me enterre na Lapinha,
Quando eu morrer me enterre na Lapinha       Refrão
Calça, culote, paletó, almofadinha
Calça, culote, paletó, almofadinha

Vai meu lamento vai contar
Toda tristeza de viver
Ai a verdade sempre trai
E às vezes traz um mal a mais
Ai só me fez dilacerar
Ver tanta gente se entregar
Mas não me conformei
Indo contra lei
Sei que não me arrependi
Tenho um pedido só
Último talvez, antes de partir

Refrão

Sai minha mágoa
Sai de mim
Há tanto coração ruim
Ai é tão desesperador
O amor perder do desamor
Ah tanto erro eu vi, lutei
E como perdedor gritei
Que eu sou um homem só
Sem saber mudar
Nunca mais vou lastimar
Tenho um pedido só
Último talvez, antes de partir

Refrão
Adeus Bahia, zum-zum-zum
Cordão de ouro
Eu vou partir porque mataram meu besouro

Corria o ano da graça de 1968, o tal “ano que não acabou”, e a TV Record não sabia o que fazer com o sucesso que tinha em mãos: os famosos Festivais.
Em 1966, o país se dividia entre “A Banda”, de Chico Buarque, e “Disparada”, de Geraldo Vandré e Téo de Barros, forçando os jurados e a Direção da emissora a armar um empate para não frustrar seus telespectadores, de um lado, nem provocar a ira dos homens de verde-oliva que perambulavam pelos corredores da Avenida Miruna, de outro (mais sobre o causo, aqui).
Em 1967, a vitória do protesto velado de “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam (“quem me dera agora, eu tivesse a viola pra cantar”), escondia no segundo lugar um trágico “Domingo no Parque” (Gilberto Gil), com direito a sangue e sorvete de morango; no terceiro, a vertigem apocalíptica  de “Roda Viva” (Chico Buarque); e, no quarto lugar, o manifesto tropicalista sem lenço e sem documento, “Alegria, Alegria” (Caetano Veloso).
Com o Regime Militar dando seus primeiros sinais de recrudescimento rumo ao famigerado AI-5, para que o ano de 1968 não acabasse mal, seria prudente que a Direção da Record tirasse esse abacaxi de seu colo.
Mas como fazê-lo sem desprezar o estrondoso sucesso de público e, principalmente, de renda?
Resposta: abrindo espaço para o pessoal da chamada “Velha Guarda”. Assim surgiu a "I Bienal do Samba", com Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, Cartola, João da Baiana, entre outros, dividindo espaço com os mais jovens na telinha e diminuindo, sensivelmente, o risco de alguma insurgência contra os militares.
Primeiro porque o samba sempre foi considerado – erroneamente, a meu ver – uma música “alienada”. Além disso, os mestres de nossa música eram doutores em samba, mas não tinham lá muita familiaridade com revoluções, fossem elas estéticas, tropicalistas, ou bolcheviques.
Baden Powell, à época, já desfrutava de bastante prestígio, principalmente por suas parcerias com Vinícius de Moraes, mas, desta vez, queria sangue novo para o novo Festival. Foi à casa do primo, João de Aquino, e roubou-lhe o parceiro, o precoce e já maduro letrista Paulo César Pinheiro, então com 16 anos e ainda imberbe.
Baden mostrou-lhe um samba de roda que aprendera na Bahia com seu amigo e capoeirista, Canjiquinha. O tema havia sido composto pelo lendário Mestre de Capoeira Besouro Mangangá, ou Besouro Cordão de Ouro, famoso tanto por suas composições quanto pela coragem de enfrentar a polícia e revoltar-se contra os desmandos dos Senhores.
Paulo César Pinheiro já havia lido no romance “Mar Morto”, de Jorge Amado, algumas histórias do Mestre capoeirista que voava como um besouro para escapar da polícia.
Percebendo que o momento era propício para aquele resgate, os compositores fizeram uma segunda parte para a música do Besouro, exaltando o homem que, mesmo só, contra o erro lutava e, ante a derrota, gritava. E assim nasceu uma das mais brilhantes parcerias da música brasileira.
Inscrita no festival, por absoluta ignorância dos organizadores, “Lapinha” quase foi desclassificada por plágio. Obviamente, tratava-se de uma citação literal, uma homenagem explícita ao canto do Besouro, sem a malícia que caracterizaria o plágio.
Depois de alguma argumentação, a canção pode seguir no festival, defendida por Elis Regina, até ser premiada com o 1º lugar da "I Bienal do Samba".
Dentre os argumentos utilizados para convencer os organizadores a manterem “Lapinha” no páreo, deve estar o fato de outra canção do Besouro Mangangá ter sido citada numa música de Noel Rosa.
Eis os versos do Besouro: “Quando eu morrer, disse Besouro/ Não quero choro nem vela / Também não quero barulho / Na porta do cemitério / Eu quero meu Berimbau / Eu quero meu Berimbau / Com uma fita amarela / Gravado com o nome dela”.
Qualquer semelhança com “Fita Amarela” não é mera coincidência. Ao que se saiba, no entanto, o Poeta da Vila jamais foi acusado de plágio.
Assim, graças ao Besouro Cordão de Ouro, o abacaxi voltou intocado ao colo dos diretores da TV Record, já que, na Globo, os Festivais mantiveram seu formato tradicional e o ano de 1968 acabou com Tom Jobim e Chico Buarque vaiados durante a apresentação da vencedora, “Sabiá”.
Ainda que, para alguns, como dito acima, 1968 não tenha acabado.
Fontes:
“A Era dos Festivais – Uma Parábola” – Zuza Homem de Melo
“Prepare Seu Coração” – Solano Ribeiro
Depoimento de Baden Powell a Fernando Faro, para o programa Ensaio, da TV Cultura de São Paulo, em 1973.

Nota do Autor: a parte final deste texto foi editada a partir do preciso comentário de Maria Sylvia Porto Alegre.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Pisa na Fulô

(João do Vale / Ernesto Pires / Silveira Júnior)

Pisa na fulô, pisa na fulô
Pisa na fulô, não maltrata o meu amô

Um dia desse fui dançá lá em Pedreira
Na rua da Golada e gostei da brincadeira
Zé Caxangá era o tocadô
Mas só tocava pisa na fulô

Sô Serafim cuchichava a Marvió
Sô capaz de jurá que eu nunca vi forró mió
Inté vovó garrô na mão de vovô
Vão’bora meu veinho, pisa na fulô

Eu vi menina que nem tinha doze ano
Agarrar seu par, também sair dançando
Satisfeita e dizendo:
Meu amô, ai como é gostoso, pisa na fulô

De madrugada Zéca Caxangá
Disse ao dono da casa
Num precisa me pagá
Mas por favô arranje outro tocadô

Que eu também quero pisa na fulô
Vem cá menina, que eu também quero
Que eu também vou pisa na fulô
Pisa na fulô, não maltrata o meu amô.


João do Vale foi um homem de duas faces.
A primeira é a do menino, que, de tão festeiro, aos sete anos, ganhou do avô o apelido de “Pé de Xote”. Sua alegria, seu ritmo, sua espontaneidade estão presentes em “Pisa na Fulô”, composição de 1957 em que retrata os arrasta-pés de sua cidade natal, Pedreira, no Maranhão, feita assim que chegou ao Rio de Janeiro e que, pela voz do cantor Ivon Curi – um galã, á época, acreditem – espalhou a fama de João do Vale, deixando todo o Nordeste orgulho do sucesso de seu filho.
A outra face de João também remonta sua infância. Quinto de oito filhos de agricultores, sem terra e muito pobres, fugiu da miséria nordestina aos quinze anos. Antes de chegar ao Rio, em paus-de-arara e pegando carona nas boleias de caminhões, passou por Piauí, Ceará, Bahia e Minas Gerais. Foi ajudante de caminhão, ajudante de pedreiro, trabalhou no garimpo, fez de tudo para sobreviver.
Até cantar.
Fugiu para virar artista, equilibrista, dividido entre a amargura da fome e a alegria do menino “Pé de Xote”.
No início dos anos 60, João do Vale passou a apresentar-se no bar Zicartola, reduto musical comandado por Cartola e sua mulher, Zica, sob os olhares atentos de Sérgio Cabral, Hermínio Belo de Carvalho, Zé Ketti, Paulinho da Viola e outros bambas. Ali, João passou a conviver com a nata da intelectualidade brasileira e a compor uma música engajada, ácida, que denunciava as agruras do nascente regime militar e as mazelas de um Brasil que não saía nos jornais, não estava nas revistas, não era Bossa Nova.
Em 1964, foi convidado por Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, para integrar o show “Opinião”, marco na história da música e do teatro brasileiros, que reunia João do Vale, Zé Keti e Nara Leão. Respectivamente, o nordestino, o favelado e a “pobre menina rica”. Um retrato do Brasil.
Agora, ele não era, apenas, o compositor de “Pisa na Fulô”. Era o autor de “Carcará”, seu maior sucesso, uma violenta crítica à ditadura, eternizada na voz da Maria Bethânia - que substituíra Nara Leão no show "Opinião".
O Brasil passava a conhecer a dura realidade do menino pobre de Pedreira. João do Vale estava vingado.
Certa noite, durante a temporada do show “Opinião” em São Paulo, depois do espetáculo, João foi tomar das suas no Bar Redondo, que ficava perto do Teatro de Arena. Lá pelas tantas, foi abordado por um coronel nordestino, aparentemente muito rico, que se deslocara de suas terras especialmente para contratá-lo para um fazer um show, no sertão de Pernambuco. Feito o convite, o Coronel avisa:
- Mas lá tu não precisa cantar essas músicas novas, não, que o povo gosta mesmo é de “Pisa na Fulô”!
João do Vale já ia declinando do convite quando o Coronel, percebendo o movimento de recusa de seu interlocutor, declinou o valor da proposta. Era irrecusável. João não podia declinar do convite.
Uma semana depois, sob sol escaldante e em meio a um foguetório, João desembarcava, em avião fretado, na cidade do Coronel.
Antes de iniciar o show, sob os olhares atentos do padre, do sacristão, do prefeito, da cidade, o Coronel anuncia o compositor de “Pisa na Fulô”.
João do Vale é ovacionado e a multidão vai logo entoando os primeiros versos da canção:
- "Pisa na fulô, pisa na fulo, pisa na fulô, não maltrata o meu amô”.
João entra na dança e comanda a galera:
- “Pisa na fulô, pisa na fulo, pisa na fulô, não maltrata o meu amô”.
O compositor cantava, alegre, dançava, comandava coreografias, e seguia em sua canção:
- “Pisa na fulô, pisa na fulo, pisa na fulô, não maltrata o meu amô”.
O tempo foi passando, o público se cansando, mas João parecia não querer se desfazer da lebrança de seus tempos de “Pé de Xote” e prosseguia, em evoluções coreográficas, decantando os bailes da Pedreira de sua infância:
- “Um dia desse fui dançá lá em Pedreira, na rua da Golada e gostei da brincadeira..."
Até chegar, novamente, ao refrão, que já começava a soar insuportável aos ouvidos da multidão.
- "Pisa na fulô, pisa na fulo, pisa na fulô, não maltrata o meu amô”.
Lá pelas tantas, percebendo que o repertório não sairia daquilo e temendo se indispor com o povaréu, o Coronel, sutileza de praxe, aproximou-se do cantor:
- Pelo amor de Deus, canta outra música que essa o povo não agüenta mais.
Imediatamente, João fez sinal à orquestra, parou de cantar e, de modo grave, levantou os braços.
A galera, atônita, calou-se.
Fez-se o silêncio.
João do Vale, então, entoou, à capela, “Sina de Caboclo”, uma das músicas mais engajadas do repertório do show "Opinião":
- “Eu sou um pobre caboclo, /Ganho a vida na enxada. /O que eu colho é dividido / Com quem não planta nada. / Se assim continuar / vou deixar o meu sertão,/ mesmos os olhos cheios d'água e com dor no coração.” (vide letra completa nos comentários, ou vejouça no You Tube)
Em pânico, o Coronel invadiu o palco, pegou o microfone e, aos berros, desesperado, retomou o enfadonho repertório:
- “Pisa na Fulô, Pisa na Fulô, Pisa na Fulô, não maltrata o meu amô”!!

Fonte: causo contado pelo Mestre Rolando Boldrin, no seu excelente “Senhor Brasil”, na TV Cultura.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Anos Dourados

(Tom Jobim / Chico Buarque)

Parece que dizes
Te amo, Maria
Na fotografia
Estamos felizes
Te ligo afobada
E deixo confissões
No gravador
Vai ser engraçado
Se tens um novo amor
Me vejo a teu lado
Te amo?
Não lembro
Parece dezembro
De um ano dourado
Parece bolero
Te quero, te quero
Dizer que não quero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais

Não sei se eu ainda
Te esqueço de fato
No nosso retrato
Pareço tão linda
Te ligo ofegante
E digo confusões no gravador
E desconcertante
Rever o grande amor
Meus olhos molhados
Insanos, dezembros
Mas quando me lembro
São anos dourados
Ainda te quero
Bolero, nossos versos são banais
Mas como eu espero
Teus beijos nunca mais
Teus beijos nunca mais

1980 © - Marola Edições Musicais Ltda.

Grande parte das canções de Chico Buarque é feita por encomenda.
Filmes, peças de teatro, balés são a verdadeira “inspiração” do artista. Escrita a peça, feito o copião do filme, a encomenda é entregue ao compositor.
Mas ele avisa: “Eu sou confiável, mas o compositor não é”.
Ou seja, o texto é escrito, o filme, filmado e a trilha, simplesmente, não fica pronta. Não por desídia, desleixo ou negligência do compositor, defende-se Chico, mas por dificuldade mesmo de fazer a letra, a canção.
Os parceiros mais chegados já conhecem a peculiaridade do amigo.
É famosa a história de “Wave”. Tom Jobim enviou-lhe a melodia da canção. Passado algum tempo, cobrou o parceiro, que, encabulado, reconheceu que só conseguira escrever um verso: “Vou te contar...”. Cansado de esperar, Tom fez o resto, se é que se pode chamar "resto" a letra de "Wave".
Com a canção “Luiza”, ocorreu o mesmo. Mais um branco de Chico, que se esquivou com o argumento de que o melhor letrista de Tom Jobim era Tom Jobim.
Até mesmo o grande Astor Piazzola foi vítima do compositor. No início dos anos 70, o maestro argentino mandou uma música para Chico pôr a letra. O letrista agradeceu a preferência e nunca mais deu as caras.
Passados os anos, já em meados da década de 80, Piazzola, que nem se lembrava mais da própria música, veio participar do programa “Chico e Caetano”, na TV Globo. Animado com a presença do argentino e a possibilidade de concretizar a parceria internacional, Chico Buarque prometeu que, finalmente, colocaria a tão esperada letra na já esquecida melodia. Com a animação do letrista, animou-se o maestro, que pôs-se, imediatamente, a ouvir a fita e trabalhar no arranjo. Na semana seguinte, já no estúdio, Piazzola recebeu a notícia de que Chico se atrasaria, pois estava jogando futebol. E pior: não conseguira fazer a letra.
O argentino ficou fulo. Não sabia do histórico do possível parceiro. Sentiu-se desrespeitado. Julgava que fosse desleixo. Não entendia como um compositor com a tarimba, a experiência de Chico Buarque, simplesmente, não conseguia colocar letra em sua música.
Amigo de ambos, Tom Jobim se divertia com a situação, botando mais lenha na fogueira e, aos risos, depreciava o parceiro preguiçoso: “O Chico é assim mesmo, ele fica jogando futebol ...”. Só a zombaria do maestro brasileiro foi capaz de acalmar o ânimo caliente do argentino.
Vê-se, portanto, que Tom era gato escaldado, mas não temia água fria.
Tanto assim que, ao receber encomenda da TV Globo para compor a trilha de abertura da minissérie “Anos Dourados”, imediatamente, pediu a Chico que fizesse a letra. 
Meses depois, Jobim assistia à estréia do programa, com sua música na abertura. Sem letra.
Chico Buarque, perna avariada no futebol, viu-se obrigado a acompanhar a trama na telinha. Em vão. A letra não saía.
Saiu do ar o programa e a letra saiu.
O letrista veio com nova e esfarrapada desculpa: “Eu não atrasei, a minissérie é que foi precipitada”.
Talvez a demora se explique pelo preciosismo do autor.
Na exposição "Chico Buarque - O tempo e o Artista, com curadoria de Zeca Buarque Ferreira, sobrinho do homenageado, a letra de "Anos Dourados" é exposta, praticamente pronta, datilografada, batida à máquina, com algumas alterações feitas à mão. Dentre elas, a substituição do artigo indefinido “um”, pelo definido “o”, quando se afirma que “é desconcertante rever o grande amor”.
Um grande amor qualquer diria, sem dificuldades, "Teus beijos nunca mais". Não deixaria confissões no gravador, nem viveria insanos dezembros dourados. 
A isto, um grande amor não se presta. Só o grande amor é capaz.
E de fazer esta distinção, Chico Buarque. Ainda que demorem alguns dezembros.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Sampa

Caetano Veloso

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e Avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destroi coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mas possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa

© Editora Gapa



Quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João, meu coração paulistano não sofre grandes abalos, a não ser por uma leve vontade de gastar quinze minutos com um chopp no terraço do Bar Brahma.
Consta, porém, que não é o que se passa com o coração de quem chega por aqui, sem nada entender. E assim se deu com Caetano, em 1965, quando, ao lado da mana Bethânia, viu seu coração vagabundo cruzar palpitante as avenidas que se cruzam e que sua canção ajudou a imortalizar.
Na verdade, a Avenida São João já havia sido imortalizada por cenas de sangue num bar cantadas em Ronda, de Paulo Vanzolini. Aliás, a frase melódica do último verso de Ronda ("cena de sangue num bar na Avenida São João") é reproduzida na introdução e nos versos finais de cada estrofe de Sampa.
O compositor paulista não gostou da citação e, a cada rara entrevista que concede, não perde a oportunidade de espinafrar o baiano, acusando-o de plágio. Costuma dizer que "Sampa é puro marketing".
Ao meu ver, é incompreensível a postura do sempre enfático e coerente Vanzolini, pois ao citar sua música em Sampa, fica claro que Caetano considerou Ronda, que já havia sido gravada por Bethânia, uma canção capaz de traduzir a cidade que ele pretendia homenagear. Trata-se, portanto, também, de uma homenagem a Paulo Vanzolini. Ainda que por tabela.
Mas Ronda é, apenas, a primeira homegeada, já que a canção é repleta de citações e homenagens a São Paulo e seus personagens, a começar por Rita Lee, eleita a mais completa tradução da cidade, e sua banda, Os Mutantes, composta por ela e pelos irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, responsáveis pela face mais rock'n roll do tropicalismo e da música popular brasileira.
O "avesso do avesso do avesso do avesso" é referência direta ao poeta concretista Décio Pignatari e sua luta pelo avesso. O irmãos Haroldo e Augusto de Campos surgem como "poetas de campos e espaços". É a dura poesia concreta nas esquinas de Caetano.
Em 1969, na montagem do Teatro Oficina de “Selva das Cidades”, de Bertold Brecht, a arquiteta e cenógrafa Lina Bo Bardi colocou meia dúzia de troncos de árvores abatidas para a construção do Minhocão num ringue de boxe. No fim da cena, ironicamente chamada de “Área Verde”, os troncos desmoronavam. Caetano ficou impressionado com a obra do Diretor José Celso Martinez Corrêa e, quando compôs Sampa, rendeu esta homenagem ao teatro paulistano, mencionando as "Oficinas de Florestas" da cidade. Hoje, José Celso defende o fim do Minhocão e a instalação de uma imensa área verde no entorno do teatro, localizado no paulistaníssimo bairro do Bixiga. Em retribuição à homenagem de Caetano, tal área será batizada de Oficina de Florestas.
Ainda que em tempos de aquecimento global São Paulo alterne momentos de estiagem e outros de enchentes, houve um tempo em que São Paulo era conhecida como "terra da garoa". Não seria de se estranhar que os "deuses da chuva" citados em Sampa fizessem menção a esta alcunha. O mais provável, porém, é que o termo faça referência ao romance "Deus da Chuva e da Morte", do poeta e compositor paulistano Jorge Mautner, amigo e parceiro de Caetano, muito próximo ao tropicalismo. Referência para a turma da Tropicália, o livro PanAmérica, de José Agrippino de Paula, também abocanhou sua citação.
Aliás, impressiona no Tropicalismo, especialmente na obra de Caetano, a tendência à auto-referência. Será que Narciso acha feio o que não é espelho?
Mas a turma da Bossa Nova também costuma merecer a atenção do bom baiano.
Johnny, volta pro Rio. São Paulo é o túmulo do samba”. Foi o que disse Vinícius de Moraes para Johnny Alf, quando este foi importunado por um cliente da boate La Cave, completamente embriagado. O autor de Sampa assinou embaixo da provocação do poeta. O curioso é que este já havia feito, muito antes dessa polêmica, em 1954, por ocasião do IV centenário da cidade, em parceria com o pernambucano-carioca, cronista, radialista, poeta, boêmio e cardispliscente Antonio Maria, o belo "Dobrado de Amor a São Paulo", cujo verso final - notem a coincidência - faz o sol encontrar o poeta na Avenida São João. Sempre a São João. (veja a letra completa nos comentários a este texto)
Por fim, quando "Novos Baianos passeiam na tua garoa", faz-se referência ao conjunto musical composto por Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Baby Consuelo (hoje, do Brasil), Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão, sempre apoiados pelos meninos da Cor do Som.
Assim, milhões de novos pernambucanos, paraibanos, cearences, alagoanos, sergipanos e, por que não, baianos, ainda podem curtir São Paulo numa boa. Vêm com outro sonho feliz de cidade. Não há mais garoa, nem lhes sobra muito tempo para o passeio. A força da grana os oprime nas filas, vilas, favelas. Correm entre carros, com suas motocicletas, lutando para não engordarem as mórbidas estatísticas. Aprenderam depressa que o outro nome de Sampa é realidade, mas seguem construindo a cidade para que ela um dia se transforme, quem sabe, em suas Áfricas utópicas, seus mais possíveis novos quilombos de Zumbi.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Trem das Onze


Não posso ficar
Nem mais um minuto com você
Sinto muito amor
Mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã
E além disso mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar
Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar

Com todo o respeito a Rita Lee e ao compositor baiano, a mais completa tradução de Sampa chama-se Adoniran Barbosa. Para muitos, "Trem das Onze" é a mais completa tradução de Adoniran. Ledo engano.
Primeiro porque o compositor morria de medo de andar de trem - temia ficar preso entre as portas quando estas se fechassem. De outra parte, Adoniran se caracterizara por adotar em suas canções a linguagem popular, compondo em português errado. O compositor se defendia: "Não adianta querer falar errado. Tem que saber falar errado".
O certo é que "Trem das Onze", que ganhou o primeiro prêmio no concurso de músicas de carnaval no 4º Centenário da cidade do Rio de Janeiro com o grupo Demônios da Garoa, em 1964, saiu sem erros de português. Exceto um.
Várias das canções de Adoniran homenageavam bairros e ruas da cidade que ele, boêmio inveterado, se gabava por conhecer pessoalmente. De fato, conhecia São Paulo como poucos, mas conta o compositor e biólogo Paulo Vanzolini, outra fiel tradução da Paulicéia, que no Jaçanã ninguém diz "em Jaçanã", como está em "Trem das Onze". Todos falam "no Jaçanã". Foi tirar satisfação e ouviu do amigo: "E eu lá sei onde é essa porcaria."
Parece que, apesar da foto ao lado, o Jaçanã Adoniran não conhecia tão bem.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

João e Maria


(Sivuca/Chico Buarque)
1977

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você
Além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rock
Para as matinês
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Sim, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido
Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim


1977 © by Cara Nova Editora Musical Ltda. Av. Rebouças, 1700 CEP 057402-200 - São Paulo - SP, Marola Edições Musicais
Todos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso no Brasil

A melodia é de Sivuca e data de 1947. Sivuca a compôs aos 17 e usava sua valsa recém saída do forno para coroar as lindas princesas de seus sonhos com belas serenatas ao luar do Recife. O pião já não era seu brinquedo, seu bicho preferido tinha outro sexo e andava nua em seu país. Seu futuro parceiro, na época com 3 anos, ainda mal armava seu bodoque.
E, por trinta anos, assim seguiu esta música, sem nome, servindo às serenatas de seu autor. Até que o dramaturgo Paulo Pontes, que estava organizando o repertório para uma apresentação de Elizeth Cardoso no Canecão, decidiu que ao show cairia bem uma parceria entre o já consagrado Chico Buarque e o Mestre Sivuca. Resolveu promover o encontro.
Sivuca, pensando no vozeirão da Divina Elizeth, desenterrou sua valsa romântica. Mas Chico estava em outra. Estava mergulhado no universo infantil, havia acabado de fazer a versão para o português do musical italiano “Saltimbancos”. A “idade” da música também influiu, como explica o próprio compositor em entrevista a Geraldo Leite (Rádio Eldorado, 1989): “Cada música tem uma história. Eu tenho uma parceria com o Sivuca que é engraçada. Ele fez a música, que ficou se chamando João e Maria. Ele mandou uma fita com uma música que ele compôs em 1947, por aí. Eu falei: "Mas isso foi quando eu nasci." A música tinha a minha idade. Quando eu fui fazer, a letra me remeteu obrigatoriamente pra um tema infantil. A letra saiu com cara de música infantil porque, simplesmente, na fitinha ele dizia: "Fiz essa música em 47." Aí pensei: "Mas eu criança..." e me levou pra aquilo. Cada parceria é uma história. Cada parceiro é uma história."
O nome da canção remete ao clássico conto de fadas dos irmãos Grimm, no qual duas crianças que se perdem na floresta por terem marcado o caminho com migalhas de pão e são capturadas pela bruxa malvada.
A música que servira de base para as cantadas de Sivuca seguiu outro caminho, aderiu ao universo infantil e acabou por abrigar uma conversa de crianças.
A canção não integrou o repertório de show de Elizeth. Não tinha mais cabimento. A primazia da primeira gravação coube a Nara Leão, princesa linda de se admirar, em dueto com o próprio Chico, arranjos de Sivuca, João Donato no teclado, Luizão Maia, contrabaixo, Meireles, flauta, o mesmo Sivuca no violão e na sanfona, e Paulinho Braga, bateria. A música estourou com a participação na trilha sonora da novela Dancin`Days e, até hoje, não pode faltar nos shows de Chico Buarque.
Agora, era fatal que o faz-de-conta terminasse assim. Em 14 de dezembro de 2006, Sivuca sumiu do mundo sem nos avisar. A música brasileira perdeu um Mestre.
Pra lá deste quintal, com a abertura política, finalmente, a noite teria um fim. Chico Buarque, crítico mordaz da ditadura militar, agora era o herói.
Quanto ao cavalo que fala inglês, consta que o próprio Chico nunca soube muito bem o que ele mesmo quis dizer. De acordo com o amigo e parceiro Francis Hime, deve ser “um cavalo muito educado."
Fontes.:
-Humberto Werneck, Gol de letras, em Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989
- Livro 85 anos de Música Brasileira Vol. 2, 1ª edição, 1997, editora 34
- http://www.gafieiras.com.br/Display.php?Area=Entrevistas&SubArea=EntrevistasPartes&ID=29&IDArtista=28&css=1&ParteNo=14

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Não Quero Mais Amar a Ninguém

Não quero mais
Amar a ninguém
Não fui feliz
O destino não quis
O meu primeiro amor
Morreu como a flor
Ainda em botão
Deixando espinhos
Que dilaceram meu coração

Semente de amor
Sei que sou desde nascença
Mas sem ter vida e fulgor
Eis minha sentença
Tentei pela primeira vez um sonho vibrar
Foi beijo que nasceu
E morreu sem se chegar a dar

Às vezes dou gargalhada
Ao lembrar do passado
Nunca pensei em amor, nunca amei nem fui amado
Se julgas que estou mentindo jurar sou capaz
Foi simples sonho que passou e nada mais.


Nos idos de 1937, quando foi composto este samba, os morros cariocas viviam um período especial. Em que pesem as dificuldades que sempre caracterizaram a vida de seus moradores, o samba estava em alta e o ritmo ali criado e digerido começava a ser difundido pelo resto do País, invadindo as luxuosas noites do Cassino da Urca, com o Regional de Benedito Lacerda.
O gênero ganhava certo glamour e os chamados "sambas de terreiro", hoje denominados “sambas de quadra”, se multiplicavam pelos morros. Eram compostos e mostrados às pastoras e instrumentistas de plantão para que eles os reproduzissem em futuras rodas. Não eram escritos, nem gravados, mas elaborados por seus autores, repassados aos sambistas e reproduzidos à exaustão, até que a letra fosse memorizada pelas pastoras.
Nesse processo minemônico, era natural que alguns versos sofressem pequenas alterações, na base do quem-conta-um-conto-aumenta-um-ponto.
Apesar de ter levado seus estudos apenas até a quarta série, a qualidade das letras de Cartola é reconhecida por todos os críticos e aficcionados por música brasileira.
Se bem que, no Brasil, em 1937, estudar até a quarta série era quase um sinal de erudição, pois boa parte da população não era, sequer, alfabetizada.
Com seus versos refinados, seria natural que "Não Quero Mais Amar a Ninguém" não escapasse de pequenos reparos que facilitassem sua compreensão pelo grande público. Convenhamos que expessões como “deixando espinhos que dilaceram meu coração” não deveriam ser das mais usuais no Morro de Mangueira.
Pois qual não foi a surpresa de Cartola, ao retornar ao terreiro da Escola para conferir seu samba, ouvi-lo ligeiramente modificado na bela voz aguda das pastoras, que, com a cabeça nas luxuosas noites do Cassino da Urca, entoavam apaixonadas: "...Deixando espinhos, Benedito Lacerda do meu coração".
Dilacerado ficou o samba de Cartola.
PS.: Este samba foi gravado, ainda em 1937, por Aracy de Almeida, na Victor, e tirou o primeiro lugar entre os sambas-enredo das escolas de samba daquele ano. Com a letra certa, é claro...

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Voltei a Cantar

(Lamartine Babo)

Voltei a cantar
porque senti saudade
do tempo em que eu andava pela cidade
Com sustenidos e bemóis
Desenhados na minha voz
E a saudade rola, rola
Como um disco de vitrola
Começo a recordar
Cantando em tom maior
E acabo no tom menor

Voltei a cantar
porque senti saudade
do tempo em que eu andava na cidade
Com sustenidos e bemois
Desenhados na minha voz
Ó meu samba, velho amigo
Novamente estou contigo
Uma vida me transtorna
Como um filho à casa torna
De ti nunca me esqueci


Este samba de Lamartine Babo, que ganhou notoriedade na voz de Mário Reis, foi o escolhido por Chico Buarque para abrir seu show “Carioca”, depois de sete anos de recesso. No show “Paratodos”, o cantor já havia composto “De volta ao Samba” com o mesmo fim: desculpar-se com seus fãs por tão longa ausência.
Desta vez, talvez por reconhecer a genealogia de seu canto, Chico Buarque tenha optado por retornar aos palcos homenageando Mário Reis e tomando emprestados os versos de Lamartine, carioca como ele e o nome de seu show.
Mário Reis era dono de voz fina como a de Chico, descobridor de divisões inusitadas, mestre no uso do microfone e destoava dos cantores de vozeirão, predominantes nos anos 30 e 40. Foi um dos principais intérpretes da obra de Noel Rosa e - o que muitos não sabem - chegou a gravar, já em fim de carreira, "A Banda", de Chico Buarque.
Além disso, Mário Reis era um bon vivant. Morou muitos anos no Copacabana Palace e privava da companhia dos mais ricos aristocratas cariocas. Talvez por isso, às vezes, sua carreira era negligenciada e Mário anunciava que iria encerrá-la. Depois mudava de idéia, retomando-a e redobrando o sucesso. Obviamente, foi numa dessa ocasiões, em 1939, que Lamartine Babo compôs “Voltei a Cantar” a pedido do amigo, para que este abrisse seu show de retorno “Jujoux e Balangandans”, no Theatro Municipal.
Mas este texto presta-se menos para refletir sobre a música de abertura de “Carioca” e mais para anunciar a retomada do blog.
Dos nove meses que levaram à gestação deste texto, os últimos três foram gastos pensando na desculpa que daria aos meus leitores, que já somam mais de três, de acordo com levantamentos de copos seriíssimos por mim efetuados ao longo deste período.
A verdade irrefutável é que fui acometido de uma súbita e alongada preguiça macunaímica de escrever. Mas não pensem vocês que adquiri vergonha na cara. Isso jamais!
Portanto, podem voltar a passar por aqui de vez em quando, que devem pintar algumas novidades. Me aguardem.
Voltei a cantar porque senti saudade.

sábado, 1 de setembro de 2007

Ronda

(Paulo Vanzolini)

De noite eu rondo a cidade
A lhe procurar sem encontrar
No meio de olhares espio nas mesas dos bares
Você não está
Volto pra casa abatida

Desenganada da vida
No sonho eu vou descansar
Nele você está
Ai se eu tivesse quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, essa busca é inútil
Eu não desistia
Porém com perfeita paciência
Sigo a procurar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando um dadinho
Jogando bilhar
E nesse dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar da avenida São João.


Paulo Emílio Vanzolini é diretor do Museu de Zoologia da USP e uma das maiores autoridades em herptologia do mundo. Pra quem não sabe, como eu não sabia até ontem, herptologia é a área da biologia destinada ao estudo de cobras e lagartos.

Talvez, por isso, ao se dedicar a compor nas rodas da boemia, Paulo Vanzolini destilou seu veneno em pérolas da música popular brasileira. Se a maior parte de seu repertório, assim como seus estudos em herptologia, é desconhecida do grande público, Ronda e Volta por Cima encontram-se entre as canções mais executadas do Brasil, rendendo alguns níqueis ao compositor, que, com o dinheiro recebido dos direitos autorais dessas canções, montou uma das maiores bibliotecas da América Latina na área de répteis e anfíbios.

Apesar do sucesso, o compositor não se cansa de soltar cobras e lagartos sobre Ronda, sua música mais famosa. Considera a canção “piegas”, uma “bobagem que fez aos 21 anos", quando estava no Exército e fazia ronda no baixo meretrício:

A coisa mais engraçada é que o povo acha que Ronda é um hino a São Paulo, mas na verdade ela é sobre uma mulher da vida (risos). Naquela época, servindo o Exército, eu patrulhava o baixo meretrício. Uma noite, na saída, eu estava tomando um chope ali pela avenida São João, quando vi uma mulher abrindo a porta do bar e olhando para dentro. Imaginei que ela estava procurando o namorado. Ele pensava que era para fazer as pazes, mas o que ela queria era passar fogo nele (risos).”

Claro que o dinheiro referente aos direitos autorais de Ronda não vem das grandes gravadoras, nem, tampouco, das rádios comerciais, mas dos pedidos feitos em guardanapos molhados de lágrimas nos botecos, em que o título da canção é, muitas vezes, confundido com o da moto japonesa: “Toca Honda”, pedem os boêmios de cotovelos doloridos.

O compositor se diverte com o feito: “Claro que eu recebo o dinheiro que entra de bom coração. (...) Japonesa fica com dor de corno e vai ao karaokê cantar Ronda”.

Ronda foi feita em 1945, mas foi gravada, somente, em 1953. Segundo Vanzolini, Inezita Barroso, muito amiga de sua mulher, foi para o Rio de Janeiro gravar A Moda da Pinga. A gravação seria num sábado à tarde e o casal foi junto para fazer companhia. Chegando lá, perguntaram a Inezita que música seria gravada no lado B do disco. O verso de A Moda da Pinga deve ter-lhe subido à cabeça: “A marvada pinga é que me atrapaia...”. Tremenda dor de cabeça. Àquela altura do campeonato, em pleno sábado, Inezita podia ser, como é, ainda hoje, conhecedora de um vasto repertório, mas onde conseguiria a autorização do autor? Foi por isso que gravou Ronda. E, de acordo com o autor, ainda errou a letra na gravação.

Para ela, a história não foi bem assim:

Eu fui pro Rio gravar A Moda da Pinga. Gostaram muito, e 'do outro lado o quê?' O Paulo Vanzolini estava comigo no Rio, tinha ido fazer um trabalho de zoologia, nós éramos muito amigos e ele foi pro estúdio comigo. Aí ele olhou assim meio pedindo e eu falei: 'Tá bom, do outro lado vai Ronda, do Paulo Vanzolini'. Aí me perguntaram: 'O que é isso?' Falei: 'É um samba paulista'. Pra que eu falei isso. 'Samba paulista, São Paulo não tem samba'. Aí o Canhoto, que era o dono do regional que acompanhava, disse: 'Canta aí pra eu ouvir'. Aí eu cantei Ronda e foi aquele sucesso."

A letra que Inezita cantou e que encabeça esta publicação é um pouco diferente daquela eternizada pelas cantoras Márcia, Maria Bethânia e pelas japonesas com dor de corno que, há mais de cinquenta anos, invadem os Karaokês e alimentam os répteis e anfíbios da biblioteca de Vanzolini.


http://www.sescsp.com.br/sesc/hotsites/mpb4/07_inezita.htm - programa Ensaio, da TV Cultura, em 1998, aos 73 anos de idade.

http://cliquemusic.uol.com.br/br/Servicos/ParaImprimir.asp?Nu_Materia=1490

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Garota de Ipanema

(Antonio Carlos Jobim/Vinícius de Moraes)

Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
Num doce balanço, a caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar

Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha

Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo sorrindo se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor

Da Patagônia a Vladivostok, todos conhecem “The Girl from Ipanema”. Que a nossa garota é das mais rodadas, ou melhor, das mais executadas do mundo, também não é novidade para quem vive entre o Oiapoque e o Chuí. Da Penha a Jacarepaguá, da mesma maneira, todos sabem que Tom Jobim e Vinícius de Moraes compuseram esta obra-prima num bar, em homenagem a Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto, ou simplesmente Helô Pinheiro.
Antes da visão inspiradora, porém, a música de Tom chegou a receber outra letra de Vinícius, que nenhum dos dois gostou muito. A música se chamaria “Caminho do Mar” e teria a seguinte letra:
“Vinha cansado de tudo
De tantos caminhos
Tão sem poesia
Tão sem passarinhos
Com medo da vida
Com medo de amar
Quando na tarde vazia
Tão linda no espaço
Eu vi a menina
Que vinha num passo
Cheio de balanço
Caminho do mar”
“Caminho do Mar” foi feita para um musical de Tom e Vinícius chamado “Blimp!”, que não chegou a ser encenado. Na peça, os atributos da garota seduziriam um extraterrestre que pousava de disco voador na praia de Ipanema.
Eis que numa bela tarde de 1962, em Ipanema, no Bar Veloso, hoje "Bar Garota de Ipanema”, na esquina da Rua Prudente de Morais com a Rua Montenegro, hoje Rua Vinícius de Moraes, o poeta que viria a dar o nome à rua e seu parceiro, entre uma e outra cervejinha, inspirarados no corpo dourado moradora do número 22 da mesma Rua Montenegro, que passava caminho do mar, resolveram mudar a letra e o nome da música, para dar mais ênfase à Garota que ao Caminho.
Somente dois anos e meio depois, quando “Garota de Ipanema” já era “The Girl from Ipanema”, conhecida em todo o mundo na voz de Astrud Gilberto e no violão de seu marido João, com o auxílio luxuoso do sax de Stan Getz, a garota descobriu que era "a Garota" e retribuiu a gentileza convidando Tom e sua mulher, Thereza, para serem padrinhos de seu casamento.
Esta, pelo menos, é a versão oficial, questionada pelo jornalista, pesquisador e crítico musical João Máximo, em um artigo escrito para o jornal “O Globo”, intitulado “Um clássico rico também em boas histórias”.
O jornalista baseia sua versão numa suposta incongruência de datas: “O samba foi escrito em meados de 1962. E a divulgação do nome da musa aconteceu três anos depois. Quem na época trabalhava na revista ‘Fatos & Fotos’ sabe: o então misto de letrista e repórter Ronaldo Bôscoli, que há muito tempo andava de olho em Heloísa Eneida, vendeu o furo de reportagem ao editor e partiu com o fotógrafo Hélio Santos para mostrar ao mundo a verdadeira Garota de Ipanema. A reportagem foi um sucesso. E promoveu de tal forma o samba que Tom e Vinicius teriam achado melhor assumir que aquela era mesmo sua musa.”
E Vinícius o fez por meio de um texto chamado “A verdadeira Garota de Ipanema”, onde exalta as virtudes da Garota e de Jobim, comparando-o a Einstein. (Leia o texto de Vinícius no comentário a esta postagem).
Se João Máximo está certo em suas afirmações não se pode garantir, mas “Garota de Ipanema” é, de fato, como ele atesta no título de seu artigo, um clássico rico também em boas histórias.
Nos anos 60, Blota Jr. e sua mulher, Sonia Ribeiro, comandavam, na TV Record, o programa “Esta Noite se Improvisa”, em que os concorrentes testavam seus conhecimentos musicais . O apresentador dizia uma palavra e o concorrente que primeiro apertasse o botão colocado à sua frente, dirigia-se ao microfone e cantava uma música, que, obviamente, contivesse a tal palavra.
Os grandes nomes da MPB participavam do programa. Consta que Caetano Veloso era imbatível, seguido de perto por Chico Buarque, que, quando não se lembrava de nenhuma música, não se fazia de rogado e compunha uma na hora, citando, ou inventando, o nome do compositor e a data em que foi feita.
Um dos piores era Vinícius. Não que lhe faltasse conhecimento ou cultura musical. Segundo o poeta, em sua família diziam que ele cantou antes de falar. O que lhe faltava, na verdade, era agilidade para apertar o botão.
Certa noite, porém, Blota Jr. lançou seu bordão:
- A palavra é... “garota”.
Mais que depressa, com agilidade do menino criado na Ilha do Governador, Vinícius premiu o botão e, já aprumado no microfone, pôs-se a cantar, cheio de graça, “Garota de Ipanema”.
Mas cheia de graça, em sua música, quem passa é a menina. Na letra não tem “garota”.
E o poeta, sem graça, voltou ao seu posto, lembrando a garota que vira passar.

Fontes:
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp0708200292.htm
http://www.garotadeipanema.com.br/historia_e_fotos_garota_de_ipanema.htm
http://www.jobim.com.br/
http://www.viniciusdemoraes.com.br/
Humberto Werneck, Gol de letras, em Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Boi Voador Não Pode

Chico Buarque - Ruy Guerra
1972-1973
Para a peça Calabar de Chico Buarque e Ruy Guerra


Quem foi, quem foi
Que falou no boi voador
Manda prender esse boi
Seja esse boi o que for

O boi ainda dá bode
Qual é a do boi que revoa
Boi realmente não pode
Voar à toa

É fora, é fora, é fora
É fora da lei, é fora do ar
É fora, é fora, é fora
Segura esse boi
Proibido voar

1972/1973 © by Cara Nova Editora Musical Ltda.

Nem que alguns senadores roguem aos céus, nem que a vaca tussa, boi não voa.
Esta marcha carnavalesca, composta por Chico Buarque e Ruy Guerra para a peça Calabar, tem servido de mote a vários protestos no Planalto Central contra os recentes escândalos envolvendo bois, vacas e outros ruminantes.
A peça é ambientada no Nordeste brasileiro, em meados do séc. XVII, no período da ocupação holandesa . Seu nome completo, Calabar, Elogio da Traição. Sua intenção, demonstrar que Domingos Fernandes Calabar, que abandonou as linhas portuguesas para aliar-se aos holandeses e, por isso, é tratado nos livros de história como grande traidor, na verdade, traíra, apenas, os interesses de Portugal, ao passo que os demais personagens traziam em seus ombros a culpa de alguma forma de traição, fosse de ordem conjugal, à sua raça, sua classe, ou ao Brasil.
Na realidade, as razões que levaram Calabar a fazer esta troca são desconhecidas, mas na peça, em sua opinião, o Brasil seria melhor se pudesse ser governado pela Holanda, ou melhor, pela Companhia das Índias Ocidentais, comandada por Maurício de Nassau, uma empresa ao invés de um Império, que promoveria um tratamento mais humano aos negros, a pacificação do país, a liberdade de culto, o desenvolvimento urbano.
Voltando à vaca fria, em uma das cenas, Nassau promete fazer uma ponte ligando Recife à Cidade Maurícia, para celebrar a paz com Portugal, mas um de seus aceclas o alerta de que o povo não tem “muita fé nessa ponte...Dizem que é mais fácil um boi voar...”, ao que o impávido colosso holandês responde: “Pois terão as duas coisas: a Ponte e o Boi! Viva Dom João Quarto, rei de Portugal!”.
Depois, quando finalmente inaugura a ponte, o personagem de Nassau cai no samba com o coro, entoando a marcha “Boi Voador não pode”, exibindo toda sua ginga holandesa e sua familiaridade com as coisas da Terrinha.
A cena encontra respaldo na história.
No dia 28 de fevereiro de 1644, um domingo, Nassau marcou a inauguração da tal ponte – hoje, “Ponte Maurício de Nassau” -, em comemoração à sua partida do Brasil. Para recuperar parte do dinheiro investido, haveria cobrança de ingressos e, para aumentar o público, o Conde holandês desafiou a gravidade e anunciou que faria “um boi voar” durante a inauguração.
E assim foi feito. Para o espetáculo, por ser manso e conhecido, foi escolhido o “boi do Melchior”, um animal de pêlo amarelado, famoso na cidade por entrar nas casas e subir as escadas. O bicho ficou ruminando o dia todo em frente ao Palácio do Governo. Ansioso, o povo vigiava incrédulo, pois sabia que se boi bravo não voava, o do Melchior não sairia do lugar.
Enquanto isso, em manobra digna dos mais astutos senadores brasileiros, Nassau ordenou que se arranjasse um pedaço de couro, de tamanho e cor iguais ao do boi exposto no Palácio, que foi empalhado e inflado como um balão. Amarrado em cordas bem finas, invisíveis ao público que lotava a praia e os barcos, o “boi voador” foi preso por roldanas e controlado por alguns marinheiros, que faziam o bovino fantasma dar piruetas em pleno ar, para delírio dos pagantes e de Maurício de Nassau, que, com a venda de ingressos, recuperou boa parte do dinheiro investido na ponte.
Por causa disso, em Brasília, até hoje, ainda há quem acredite em obras faraônicas e bois voadores. É verdade que eles custam muito mais caro que seus colegas terrestres. Mas boi voador não pode. É fora do ar. É fora da lei. Por isso, o povo canta:
-“Manda prender esse boi, seja esse boi o que for!”

Fonte: GONÇALVES, Fernando Antônio. O Capibaribe e as pontes. Recife: Comunigraf, 1997. 86p.
BUARQUE, Chico e GUERRA, Ruy. Calabar: Elogio da Traição– 20 ed. Com texto revisado e modificado pelos autores. Rio de Janeiro: Civilação Brasileira, 1995.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Torresmo à milanesa


(Adoniran Barbosa e Carlinhos Vergueiro)

O enxadão da obra
Bateu onze horas
Vamo se embora, João
Vamo se embora, João
Que é que você troxe

Na marmita, Dito?

Truxe ovo frito
Truxe ovo frito
E você, Beleza,
o que é que você troxe?
Arroz com feijão
E um torresmo à milanesa
Da minha Tereza
Vamos almoçá
Sentados na calçada
Conversarmos sobre isso e aquilo
Coisas que nóis não entende nada

Depois, puxa uma palha
Andar um pouco
Pra fazê o quilo
É dureza, João...
É dureza, João...
O mestre falô
Que hoje não tem vale, não
Ele se esqueceu
Que lá em casa num só eu...


Sete da madruga e os caras já estão na labuta pesada, muitos tomando a primeira cachaça para afastar a fome e espantar os fantasmas da dura realidade. Às onze, a batida do enxadão anuncia a hora de conferir a marmita preparada na noite anterior pela mulher, que terá sua memória celebrada no sabor e na cor do feijão. Claro, se houver mulher, se houver feijão.
Em Torresmo à Milanesa, entretidos com suas marmitas, os peões conversam acaloradamente sobre coisas que não entendem nada. O torresmo colocado na marmita de Dito, provável Benedito, evidencia mais um traço da cultura nordestina que ajuda a construir São Paulo. O colega Beleza, por sua vez, deve ter recebido a alcunha em virtude de seus atributos físicos, ou à falta de virtude destes.
Além de cantar São Paulo, assim como na maioria de suas composições, Adoniran traz, em Torresmo à Milanesa, uma das características mais marcantes de sua obra: rir da própria desgraça, aproveitar a miséria para fazer humor.
Em 1980, Adoniran incluiria a canção em seu último disco, “Adoniran Barbosa e Convidados”. A capa, a cargo de Elifas Andreato, traria, inicialmente, o desenho de um palhaço triste. O pessoal da gravadora não gostou e convenceu Elifas a refazê-la, sob o argumento de que talvez “Adoniran não entenderia esse negócio de palhaço”. O disco foi lançado com um belo retrato do compositor. O desenho do palhaço foi parar nas mãos de Fernando Faro, amigo de Adoniran e produtor do LP. Ao se deparar com sua própria figura transformada num palhaço chorando, nas mãos do amigo, Adoniran telefonou para Elifas: “Sou esse palhaço triste aqui, não esse alemão que você colocou no disco!”.
Torresmo à Milanesa foi feito pelo palhaço triste e não por qualquer outro Adoniran que vagasse pelas ruas de São Paulo. Este samba foi composto com Carlinhos Vergueiro, em meia hora, de pé, sem instrumentos, no balcão do antigo bar "Mutamba", na R. Major Quedinho, lugar muito frequentado por artistas, jornalistas e boêmios, pois ficava ao lado da Rádio e do estúdio Eldorado.
Chegando em casa, precavido, Carlinhos Vergueiro registrou o samba numa fita e, algum tempo depois, levou-a à casa do novo parceiro para os ajustes finais. O principal ajuste foi na marmita do Beleza. Perguntado por Dito sobre o conteúdo de sua bóia, este responderia: “Arroz com feijão e um bife à milanesa”.
Nesse momento, Adoniran pediu ao parceiro:
- Carlinhos, desculpe, vamo voltá a fitinha, canta torresmo à milanesa....
- Mas por que Adoniran?
- Porque não existe.
Este é o palhaço, que prefere o imaginário ao real. E assim, o verso ficaria “arroz com feijão e torresmo à milanesa”.
Carlinhos retomou o violão, voltou a fita e tornou a cantar o samba, para conferir se a nova letra funcionava.
Mas parece que Adoniran queria que Beleza sentisse fome. Ao chegar naquele pedaço, ele interrompeu novamente o parceiro:
- Desculpa Carlinhos, vamo voltá mais uma vez, canta só “um torresmo”...
- Mas por que Adoniran?
- Porque é mais triste!...
Por isso, os palhaços choram...

Fontes:
- http://vejasaopaulo.abril.com.br/entrevistas/m0117294.html
- papo de buteco com o amigo Mário Mammana, amigo de Fernando Faro, profundo conhecedor dos sambas e histórias de Adoniran, amante de cerveja e comedor torresmo, entre outras coisas.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Chico Mineiro

(1946)
Tonico e Francisco Ribeiro

Cada vez que me "alembro" do amigo Chico Mineiro, das viagens que eu fazia era ele meu companheiro. Sinto uma tristeza, uma vontade de chorar, se "alembrando" daqueles tempos que não há mais de voltar. Apesar de ser patrão, eu tinha no coração o amigo Chico Mineiro, caboclo bom e decidido, na viola delorido e era peão dos boiadeiros. Hoje porém com tristeza recordando das proezas das viagens e motins, viajamos mais de dez anos, vendendo boiada e comprando, por esse rincão sem-fim.
Mas porém, chegou o dia que o Chico apartou-se de mim.

Fizemos a última viagem
Foi lá pro sertão de Goiás.
Foi eu e o Chico Mineiro
também foi um capataz.
Viajemo muitos dia
pra chegar em Ouro Fino
aonde nós passemo a noite
numa festa do Divino.
A festa estava tão boa
mas antes não tivesse ido
o Chico foi baleado
por um homem desconhecido.
Larguei de comprar boiada.
Mataram meu companheiro.
Acabou-se o som da viola,
acabou-se o Chico Mineiro.
Depois daquela tragédia
fiquei mais aborrecido.
Não sabia da nossa amizade
porque nós dois era unido.
Quando vi seus documento
me cortou o coração
de sabê que o Chico Mineiro
era meu legítimo irmão.


Por trás de grandes canções, normalmente, há uma parceria. Mas por trás de uma parceria, sempre há uma grande amizade.
Chico Buarque, que traz no rol de parceiros Tom Jobim, Edu Lobo, Toquinho, Francis Hime, Vinícius de Moraes, Fagner, Ivan Lins, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Caetano Veloso garante: são todos seus amigos. Se não fossem não seriam seus parceiros. Não dá para fazer uma canção em conjunto sem ter um certo grau de intimidade e afinidade com o parceiro.
Vinícius de Moraes exigia fidelidade matrimonial de seus parceiros, certamente, com mais afinco do que o fazia em seus matrimônios.
Os parceiros “Carlos”, Roberto e Erasmo, chegavam a compor juntos ou separadamente, sem abrir mão de registrar as canções como sendo de autoria da dupla.
Por falar em dupla, no campo da música sertaneja, a coisa é um pouco diferente. Não existe Alvarenga sem Ranchino, Tião Carreiro sem Pardinho, Milionário sem José Rico, Tinoco sem Tonico, mas, na maioria dos casos, apenas um lado da moeda se encarrega das composições, buscando parceria em outra freguesia.
No caso de Tonico e Tinoco, por exemplo, é Tonico que assina com outros parceiros a maioria das composições da dupla, que é uma das mais longevas da música brasileira. Cantaram 50 anos juntos, de 1944 a 1994, quando Tinoco fez sua última viagem para um sertão mais longínquo que Goiás.
A música que levou a dupla a alçar vôos mais altos foi Chico Mineiro, de Tonico e Francisco Ribeiro. Tonico ouvia, desde criança, seu pai contar a “lenda” do Chico Mineiro. Alguns dizem que o apelido de Chico mudava de acordo com o Estado onde a lenda era contada. Podia ser Chico Mineiro, Goiano, Paulista...
No início da carreira, fizeram uma apresentação na Rádio Tupi e, na saída, o porteiro, que havia ouvido o programa e era, provavelmente, oriundo de algum sertão do Brasil, perguntou a Tonico se ele conhecia a história do Chico Mineiro. Os causos contados pelo pai se reacenderam na memória e, misturados ao som da viola, levaram-no a compor, sozinho, a canção.
Um fato curioso é que, quando foram gravá-la, a gravadora informou aos sertanejos que este seria seu último disco, pois os ouvintes reclamavam que não entendiam a sua pronúncia caipira do interior de São Paulo.
O leitor atento deve agora se perguntar: se Tonico compôs Chico Mineiro sozinho, quem é Francisco Ribeiro, que recebe em parceria os créditos da canção?
Trata-se do porteiro da TV Tupi, que fez com que o compositor se lembrasse da lenda do Chico Mineiro. Como prova de amizade e gratidão, Tonico deu-lhe a parceria.
Afinal, parceiro não precisa nem ser parceiro, mas tem que ser amigo.

Fontes:
Ranato Vivacqua -Música Popular Brasileira - Cantos e Encantos
http://www.widesoft.com.br/users/pcastro2/biograf.htm