segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Trem das Onze


Não posso ficar
Nem mais um minuto com você
Sinto muito amor
Mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã
E além disso mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar
Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar

Com todo o respeito a Rita Lee e ao compositor baiano, a mais completa tradução de Sampa chama-se Adoniran Barbosa. Para muitos, "Trem das Onze" é a mais completa tradução de Adoniran. Ledo engano.
Primeiro porque o compositor morria de medo de andar de trem - temia ficar preso entre as portas quando estas se fechassem. De outra parte, Adoniran se caracterizara por adotar em suas canções a linguagem popular, compondo em português errado. O compositor se defendia: "Não adianta querer falar errado. Tem que saber falar errado".
O certo é que "Trem das Onze", que ganhou o primeiro prêmio no concurso de músicas de carnaval no 4º Centenário da cidade do Rio de Janeiro com o grupo Demônios da Garoa, em 1964, saiu sem erros de português. Exceto um.
Várias das canções de Adoniran homenageavam bairros e ruas da cidade que ele, boêmio inveterado, se gabava por conhecer pessoalmente. De fato, conhecia São Paulo como poucos, mas conta o compositor e biólogo Paulo Vanzolini, outra fiel tradução da Paulicéia, que no Jaçanã ninguém diz "em Jaçanã", como está em "Trem das Onze". Todos falam "no Jaçanã". Foi tirar satisfação e ouviu do amigo: "E eu lá sei onde é essa porcaria."
Parece que, apesar da foto ao lado, o Jaçanã Adoniran não conhecia tão bem.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

João e Maria


(Sivuca/Chico Buarque)
1977

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você
Além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rock
Para as matinês
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Sim, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido
Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim


1977 © by Cara Nova Editora Musical Ltda. Av. Rebouças, 1700 CEP 057402-200 - São Paulo - SP, Marola Edições Musicais
Todos os direitos reservados. Copyright Internacional Assegurado. Impresso no Brasil

A melodia é de Sivuca e data de 1947. Sivuca a compôs aos 17 e usava sua valsa recém saída do forno para coroar as lindas princesas de seus sonhos com belas serenatas ao luar do Recife. O pião já não era seu brinquedo, seu bicho preferido tinha outro sexo e andava nua em seu país. Seu futuro parceiro, na época com 3 anos, ainda mal armava seu bodoque.
E, por trinta anos, assim seguiu esta música, sem nome, servindo às serenatas de seu autor. Até que o dramaturgo Paulo Pontes, que estava organizando o repertório para uma apresentação de Elizeth Cardoso no Canecão, decidiu que ao show cairia bem uma parceria entre o já consagrado Chico Buarque e o Mestre Sivuca. Resolveu promover o encontro.
Sivuca, pensando no vozeirão da Divina Elizeth, desenterrou sua valsa romântica. Mas Chico estava em outra. Estava mergulhado no universo infantil, havia acabado de fazer a versão para o português do musical italiano “Saltimbancos”. A “idade” da música também influiu, como explica o próprio compositor em entrevista a Geraldo Leite (Rádio Eldorado, 1989): “Cada música tem uma história. Eu tenho uma parceria com o Sivuca que é engraçada. Ele fez a música, que ficou se chamando João e Maria. Ele mandou uma fita com uma música que ele compôs em 1947, por aí. Eu falei: "Mas isso foi quando eu nasci." A música tinha a minha idade. Quando eu fui fazer, a letra me remeteu obrigatoriamente pra um tema infantil. A letra saiu com cara de música infantil porque, simplesmente, na fitinha ele dizia: "Fiz essa música em 47." Aí pensei: "Mas eu criança..." e me levou pra aquilo. Cada parceria é uma história. Cada parceiro é uma história."
O nome da canção remete ao clássico conto de fadas dos irmãos Grimm, no qual duas crianças que se perdem na floresta por terem marcado o caminho com migalhas de pão e são capturadas pela bruxa malvada.
A música que servira de base para as cantadas de Sivuca seguiu outro caminho, aderiu ao universo infantil e acabou por abrigar uma conversa de crianças.
A canção não integrou o repertório de show de Elizeth. Não tinha mais cabimento. A primazia da primeira gravação coube a Nara Leão, princesa linda de se admirar, em dueto com o próprio Chico, arranjos de Sivuca, João Donato no teclado, Luizão Maia, contrabaixo, Meireles, flauta, o mesmo Sivuca no violão e na sanfona, e Paulinho Braga, bateria. A música estourou com a participação na trilha sonora da novela Dancin`Days e, até hoje, não pode faltar nos shows de Chico Buarque.
Agora, era fatal que o faz-de-conta terminasse assim. Em 14 de dezembro de 2006, Sivuca sumiu do mundo sem nos avisar. A música brasileira perdeu um Mestre.
Pra lá deste quintal, com a abertura política, finalmente, a noite teria um fim. Chico Buarque, crítico mordaz da ditadura militar, agora era o herói.
Quanto ao cavalo que fala inglês, consta que o próprio Chico nunca soube muito bem o que ele mesmo quis dizer. De acordo com o amigo e parceiro Francis Hime, deve ser “um cavalo muito educado."
Fontes.:
-Humberto Werneck, Gol de letras, em Chico Buarque Letra e Música, Cia da Letras, 1989
- Livro 85 anos de Música Brasileira Vol. 2, 1ª edição, 1997, editora 34
- http://www.gafieiras.com.br/Display.php?Area=Entrevistas&SubArea=EntrevistasPartes&ID=29&IDArtista=28&css=1&ParteNo=14

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Não Quero Mais Amar a Ninguém

Não quero mais
Amar a ninguém
Não fui feliz
O destino não quis
O meu primeiro amor
Morreu como a flor
Ainda em botão
Deixando espinhos
Que dilaceram meu coração

Semente de amor
Sei que sou desde nascença
Mas sem ter vida e fulgor
Eis minha sentença
Tentei pela primeira vez um sonho vibrar
Foi beijo que nasceu
E morreu sem se chegar a dar

Às vezes dou gargalhada
Ao lembrar do passado
Nunca pensei em amor, nunca amei nem fui amado
Se julgas que estou mentindo jurar sou capaz
Foi simples sonho que passou e nada mais.


Nos idos de 1937, quando foi composto este samba, os morros cariocas viviam um período especial. Em que pesem as dificuldades que sempre caracterizaram a vida de seus moradores, o samba estava em alta e o ritmo ali criado e digerido começava a ser difundido pelo resto do País, invadindo as luxuosas noites do Cassino da Urca, com o Regional de Benedito Lacerda.
O gênero ganhava certo glamour e os chamados "sambas de terreiro", hoje denominados “sambas de quadra”, se multiplicavam pelos morros. Eram compostos e mostrados às pastoras e instrumentistas de plantão para que eles os reproduzissem em futuras rodas. Não eram escritos, nem gravados, mas elaborados por seus autores, repassados aos sambistas e reproduzidos à exaustão, até que a letra fosse memorizada pelas pastoras.
Nesse processo minemônico, era natural que alguns versos sofressem pequenas alterações, na base do quem-conta-um-conto-aumenta-um-ponto.
Apesar de ter levado seus estudos apenas até a quarta série, a qualidade das letras de Cartola é reconhecida por todos os críticos e aficcionados por música brasileira.
Se bem que, no Brasil, em 1937, estudar até a quarta série era quase um sinal de erudição, pois boa parte da população não era, sequer, alfabetizada.
Com seus versos refinados, seria natural que "Não Quero Mais Amar a Ninguém" não escapasse de pequenos reparos que facilitassem sua compreensão pelo grande público. Convenhamos que expessões como “deixando espinhos que dilaceram meu coração” não deveriam ser das mais usuais no Morro de Mangueira.
Pois qual não foi a surpresa de Cartola, ao retornar ao terreiro da Escola para conferir seu samba, ouvi-lo ligeiramente modificado na bela voz aguda das pastoras, que, com a cabeça nas luxuosas noites do Cassino da Urca, entoavam apaixonadas: "...Deixando espinhos, Benedito Lacerda do meu coração".
Dilacerado ficou o samba de Cartola.
PS.: Este samba foi gravado, ainda em 1937, por Aracy de Almeida, na Victor, e tirou o primeiro lugar entre os sambas-enredo das escolas de samba daquele ano. Com a letra certa, é claro...

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Voltei a Cantar

(Lamartine Babo)

Voltei a cantar
porque senti saudade
do tempo em que eu andava pela cidade
Com sustenidos e bemóis
Desenhados na minha voz
E a saudade rola, rola
Como um disco de vitrola
Começo a recordar
Cantando em tom maior
E acabo no tom menor

Voltei a cantar
porque senti saudade
do tempo em que eu andava na cidade
Com sustenidos e bemois
Desenhados na minha voz
Ó meu samba, velho amigo
Novamente estou contigo
Uma vida me transtorna
Como um filho à casa torna
De ti nunca me esqueci


Este samba de Lamartine Babo, que ganhou notoriedade na voz de Mário Reis, foi o escolhido por Chico Buarque para abrir seu show “Carioca”, depois de sete anos de recesso. No show “Paratodos”, o cantor já havia composto “De volta ao Samba” com o mesmo fim: desculpar-se com seus fãs por tão longa ausência.
Desta vez, talvez por reconhecer a genealogia de seu canto, Chico Buarque tenha optado por retornar aos palcos homenageando Mário Reis e tomando emprestados os versos de Lamartine, carioca como ele e o nome de seu show.
Mário Reis era dono de voz fina como a de Chico, descobridor de divisões inusitadas, mestre no uso do microfone e destoava dos cantores de vozeirão, predominantes nos anos 30 e 40. Foi um dos principais intérpretes da obra de Noel Rosa e - o que muitos não sabem - chegou a gravar, já em fim de carreira, "A Banda", de Chico Buarque.
Além disso, Mário Reis era um bon vivant. Morou muitos anos no Copacabana Palace e privava da companhia dos mais ricos aristocratas cariocas. Talvez por isso, às vezes, sua carreira era negligenciada e Mário anunciava que iria encerrá-la. Depois mudava de idéia, retomando-a e redobrando o sucesso. Obviamente, foi numa dessa ocasiões, em 1939, que Lamartine Babo compôs “Voltei a Cantar” a pedido do amigo, para que este abrisse seu show de retorno “Jujoux e Balangandans”, no Theatro Municipal.
Mas este texto presta-se menos para refletir sobre a música de abertura de “Carioca” e mais para anunciar a retomada do blog.
Dos nove meses que levaram à gestação deste texto, os últimos três foram gastos pensando na desculpa que daria aos meus leitores, que já somam mais de três, de acordo com levantamentos de copos seriíssimos por mim efetuados ao longo deste período.
A verdade irrefutável é que fui acometido de uma súbita e alongada preguiça macunaímica de escrever. Mas não pensem vocês que adquiri vergonha na cara. Isso jamais!
Portanto, podem voltar a passar por aqui de vez em quando, que devem pintar algumas novidades. Me aguardem.
Voltei a cantar porque senti saudade.