segunda-feira, 23 de abril de 2007

O Filho Que Eu Quero Ter

Toquinho/Vinícius de Moraes

É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter
Dorme, meu pequenininho
Dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem

De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde vim
Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim
Dorme, menino levado
Dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem

Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter


Pode até ser que Toquinho tenha sido alertado pela célebre frase de Brás Cubas, personagem de Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".
O fato, porém, é que não lhe deu ouvidos e, numa bela tarde, na praia de Boa Viagem, no Recife, contou a Vinícius sobre seu desejo de ter um filho. Experiente no assunto, o poeta respondeu algo como “Vai nessa! Dá trabalho, mas é muito bom.”
E Toquinho foi além. Mostrou-lhe uma melodia que havia composto inspirado naquele desejo, com uma levada típica de cantigas de ninar. Foi à praia e deixou o parceiro a embalar a música recém-composta.
Ao voltar, encontrou Vinícius aos prantos, com a letra pronta.
Toquinho costuma dizer que a vontade de ter filho era sua, mas Vinícius fez a letra pensando muito mais em si. O homem encantado com o sonho de ter um filho, vê-lo crescer e, ao final, em seu leito de morte, ser por ele embalado com a mesma canção com que o fazia ninar, embevecido por vê-lo reproduzir seu sonho de também ter um filho.
A canção foi lançada por Chico Buarque, no disco Sinal Fechado, em 1974. No ano seguinte, os autores incluem a canção no disco Vinicius de Moraes e Toquinho, da Philips, com direção e produção de Fernando Faro e capa do grande artista plástico e companheiro de futebol de Toquinho, Elifas Andreato.
Elifas, na época com aproximadamente 28 anos, não queria ter filhos, pois tinha alguns problemas de relacionamento com seu pai, mas confessa que esta canção mudou seu jeito de pensar.
Dois anos depois, nasceu Bento e o novo pai coruja foi contar a novidade para Vinícius, que respondeu apenas:
- Que bom! Só assim você poderá entender seu pai...

Fonte: “Impressões”, Elifas Andreato, Ed. Globo
CD Toquinho Exclusivo: Ensinando a Viver

terça-feira, 17 de abril de 2007

Gota d'Água

Chico Buarque/1975

Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta pro desfecho da festa
Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água
1975 © by Cara Nova Editora Musical Ltda.

A canção foi escrita para a peça.
A canção é só de Chico Buarque e a peça tem a co-autoria Paulo Pontes. Toda escrita em versos, o texto é uma adaptação da tragédia grega Medéia, de Eurípedes.
Inspirados numa idéia de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, os autores transportam a tragédia da Grécia para a Vila do Meio-Dia, conjunto habitacional de propriedade do onipotente Creonte, onde os mutuários quanto mais pagam, mais devem.
Interpretada por Bibi Ferreira, à época mulher de Paulo Pontes, Joana, a nossa Medéia, é abandonada por Jasão, compositor do grande samba“Gota d'Água”, sucesso nacional.
O samba de Jasão traduz o desamparo e o desespero da mulher abandonada:“Já lhe dei meu corpo, minha alegria”, (...) "olha a voz que me resta, olha a veia que salta”
Famoso, o compositor resolve se casar com Alma, filha de Creonte: “e qualquer desatenção, faça não! Pode ser a gota d'água!”. A tragédia está anunciada.
Para vingar-se, Joana compartilha com os filhos um bolo envenenado. Tragédia grega é assim, ainda que escrita na Tijuca.
No prefácio da peça, os autores analisam as mazelas da política econômica do Brasil de meados dos anos 70. Não bastasse a repressão militar, a política econômica começava a dar os primeiros sinais de sua agonia. Contudo, os autores ressaltam a voz que lhes resta, graças a alguns intelectuais que se insurgiam contra aquela falaciosa verdade neo-liberal, como por exemplo, a veia que salta de Antonio Cândido e o jovem professor da USP Fernando Henrique Cardoso, a gota que falta e o desfecho da festa.
Se Paulo Pontes fosse vivo, certamente os autores, hoje, editariam o prefácio, seguindo as orientações do ex-Presidente de que esquecessem o que ele ecreveu.
Voltando à canção, ou à peça...
Chico Buarque e Paulo Pontes foram contemplados com o Prêmio Molière. A cobertura da entrega seria feita em rede nacional pela TV Globo. Seria, porque houve cobertura, mas não houve entrega, pois os autores de recusaram a receber o prêmio.
Em entrevista concedida a Antônio Chrysóstomo, da Revista Veja, em 28/10/1976, Chico Buarque expõe seu pote até aqui de mágoa:
“CHICO — Muita gente disse: que atitude orgulhosa, antipática. Pois é, uma atitude antipática a gente tem de tomar de vez em quando. No caso, porque as pessoas se esqueceram de que, em 1975, quando "Gota d'Água" foi considerada a melhor peça, no mesmo ano, para citar só um caso, "Abajur Lilás", de Plínio Marcos, foi proibida. Neste mesmo ano, "Rasga Coração", de Oduvaldo Vianna Filho, teve abortada uma tentativa de encenação, também por ordem da Censura. Eu e Paulo Pontes conversamos e chegamos à conclusão de que seria pouco ético botar smoking e ir lá receber um prêmio que talvez nem fosse da gente. Se "Abajur Lilás" ou "Rasga Coração tivessem conseguido chegar ao público, portanto disputar aquele prêmio, será que nós teríamos sido os autores escolhidos? Por isso não fomos."
Isso foi o que ele disse ao repórter, mas poderia ter cantado:
- "Deixa em paz meu coração..."

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Tonga da Mironga do Cabuletê

Toquinho e Vinicius de Moraes


Eu caio de bossa eu sou quem eu sou
Eu saio da fossa xingando em nagô
Você que ouve e não fala / Você que olha e não vê
Eu vou lhe dar uma pala / Você vai ter que aprender
A tonga da mironga do cabuletê
A tonga da mironga do cabuletê
A tonga da mironga do cabuletê
Você que lê e não sabe / Você que reza e não crê
Você que entra e não cabe / Você vai ter que viver
Na tonga da mironga do cabuletê
Na tonga da mironga do cabuletê
Na tonga da mironga do cabuletê
Você que fuma e não traga / E que não paga pra ver
Vou lhe rogar uma praga / Eu vou é mandar você
Pra tonga da mironga do cabuletê
Pra tonga da mironga do cabuletê
Pra tonga da mironga do cabuletê



1970.
Vinícius e Toquinho voltam da Itália onde haviam acabado de inaugurar a parceria com o disco “A Arca de Noé”, fruto de um velho livro que o poetinha fizera para seu filho Pedro, quando este ainda era menino.
Encontram o Brasil em pleno “milagre econômico”. A censura em alta, a Bossa em baixa. Opositores ao regime pagando com a liberdade e a vida o preço de seus ideais. O poeta é visto como comunista pela cegueira militar e ultrapassado pela intelectualidade militante, que pejorativa e injustamente classifica sua música de easy music.
No teatro Castro Alves, em Salvador, é apresentada ao Brasil a nova parceria.
Vinícius está casado com a atriz baiana Gesse Gessy, uma das maiores paixões de sua vida, que o aproximaria do candomblé, apresentando-o à Mãe Menininha do Gantois. Sentindo a angústia do companheiro, Gesse o diverte, ensinando-lhe xingamentos em Nagô, entre eles “tonga da mironga do cabuletê”, que significa “o pêlo do cu da mãe”.
O mote anal e seu sentimento em relação aos homens de verde oliva inspiram o poeta. Com Toquinho, Vinícius compõe a canção para apresentá-la no Teatro Castro Alves.
Era a oportunidade de xingar os militares sem que eles compreendessem a ofensa.
E o poeta ainda se divertia com tudo isso: “Te garanto que na Escola Superior de Guerra não tem um milico que saiba falar nagô”.

Fonte: Vinicius de Moraes: o Poeta da Paixão; uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.