É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrerVejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter
Dorme, meu pequenininho
Dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem
De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde vim
Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim
Dorme, menino levado
Dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem
Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter
Pode até ser que Toquinho tenha sido alertado pela célebre frase de Brás Cubas, personagem de Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria".
O fato, porém, é que não lhe deu ouvidos e, numa bela tarde, na praia de Boa Viagem, no Recife, contou a Vinícius sobre seu desejo de ter um filho. Experiente no assunto, o poeta respondeu algo como “Vai nessa! Dá trabalho, mas é muito bom.”
E Toquinho foi além. Mostrou-lhe uma melodia que havia composto inspirado naquele desejo, com uma levada típica de cantigas de ninar. Foi à praia e deixou o parceiro a embalar a música recém-composta.
Ao voltar, encontrou Vinícius aos prantos, com a letra pronta.
Toquinho costuma dizer que a vontade de ter filho era sua, mas Vinícius fez a letra pensando muito mais em si. O homem encantado com o sonho de ter um filho, vê-lo crescer e, ao final, em seu leito de morte, ser por ele embalado com a mesma canção com que o fazia ninar, embevecido por vê-lo reproduzir seu sonho de também ter um filho.
A canção foi lançada por Chico Buarque, no disco Sinal Fechado, em 1974. No ano seguinte, os autores incluem a canção no disco Vinicius de Moraes e Toquinho, da Philips, com direção e produção de Fernando Faro e capa do grande artista plástico e companheiro de futebol de Toquinho, Elifas Andreato.
Elifas, na época com aproximadamente 28 anos, não queria ter filhos, pois tinha alguns problemas de relacionamento com seu pai, mas confessa que esta canção mudou seu jeito de pensar.
Dois anos depois, nasceu Bento e o novo pai coruja foi contar a novidade para Vinícius, que respondeu apenas:
- Que bom! Só assim você poderá entender seu pai...
Fonte: “Impressões”, Elifas Andreato, Ed. Globo
CD Toquinho Exclusivo: Ensinando a Viver
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